Já faz tempo que o navio partiu a navegar pelo oceano. Não é um navio com destino certo, mas uma nau desbravadora de novos mundos, novas vidas, novas civilizações... Há muito deixou o porto que achava seguro. Agora, aventura-se singrando mares desconhecidos...
Já aportou em alguns portos, travou contatos, fez trocas, conheceu e experimentou o exotismo de cada nova cultura abordada... Cada uma, com seu sabor, sua textura, suas peculiaridades... E após, partiu novamente, cruzando os oceanos em busca de algo mais...
Aos poucos, a nau, cada vez mais distante do ponto de partida, onde a despedida havia sido intensa, foi se perdendo no horizonte... Luas e luas se seguiram, naquela navegação onde a própria embarcação não estava pronta, pois havia partido incompleta, danificada por grandes batalhas... Mas seu destino não estava naquele porto fatídico que deixou para trás, quando finalmente resolveu navegar.
Então, saiu assim mesmo, e somente agora a tripulação percebera que já estava havia muito em sua nova jornada... E que aquele porto originário já estava longe, perdido no horizonte infindo de mares desconhecidos... E quão interessantes eram os mares... A liberdade... Ainda que os ventos nem sempre soprassem por trás, inflando as velas, levando o barco para algum novo destino, mesmo a navegação lenta, o observar de luneta os horizontes em busca de nova terra para aportar, mesmo semanas e semanas aparentemente intermináveis presas no vazio da imensidão azul, mesmo isso e as dificuldades de se conseguir remontar as partes atingidas, não fazia com que a viagem fosse ruim...
Por vezes a tripulação desanimava, sentia-se desmotivada, mas havia dias de pesca, onde se regozijavam de alcançar algo diferente para se nutrir, dias de marasmo, onde apenas o calor do sol alegrava ou o vento soprando trazia odores de possibilidades a descobrir, ou onde até mesmo tempestades e chuvas, o perigo ronsando cada vagalhão que insistia em socar o navio, parecia fornecer a adrenalina necessária para seguir em frente...
Na verdade, era sempre assim. Sempre fora. E da ponte de comando, o capitão pensava que, naqueles tempos, em que as amarras estavam presas a seu porto de origem, mesmo quando navegava em busca de descobertas que poderiam ser vantajosas, enriquecedoras, sempre havia a licença poética para navegar sob uma bandeira... e voltar para o porto seguro, deixando a todos, comando e tripulação, tranquilos de que "havia um lugar para voltar"...
Mas atualmente... e já fazia tempo, a nau estava longe daquele porto que um dia parecia seguro, mas que se mostrou apenas mais um ponto de passagem. O passar do tempo mostrou que as coisas não eram bem o que pareciam e que aquela cultura um dia aportada, havia se mostrado enganosa. E conquanto tivesse partilhado coisas boas, buscava apenas enriquecer-se das vantagens de ter um navio em seu porto. Vangloriar-se de sua altura. Nutrir-se do que aquela nau poderia trazer de bom a cada ida e volta de suas viagens...
E um dia inciaram-se conflitos de interesses e seguiu-se uma guerra. E após sangrentas batalhas, o navio deixou aquele porto enganoso... Danificado pelas batalhas, sem provisões, com laços partidos entre toda a tripulação... Dúvidas, tristezas, muita revolta interna, até, com algumas tentativas de motins, onde o coração da tripulação tentava se insuflar para voltar ao porto... Mas com o tempo e a navegação, as estrelas do céu como guias, o navio seguiu seu caminho incerto...
Em recente abordagem em outro porto, todos se pegaram pensando como o tempo havia sido bom a eles e suas viagens, com novos portos chegados e partidos, mas sem guerras ou batalhas. Apenas o alegre feito de contato de outras vidas, onde pode-se partilhar, ainda que por pouco tempo, da hospitalidade dos momentos em que o navio estava ancorado...
E veio a estranha certeza, entre todos, de que viajar era preciso... De que aquele porto, que um dia tiveram como "seguro", não o era... E que já fazia tempo que estavam libertos das amarras que prendiam seu navio lá... Não só as amarras físicas, mas daquelas que, como as cordas, o tempo, a chuva, o calor do sol, faz com que os nós se apertem e sejam mais difíceis de se soltar... As amarras da mente...
Felizmente, aquelas memórias já estavam há muito idas... E a tripulação jazia tranquila e feliz, mesmo com isso. Nem mesmo as memórias boas daquele porto haviam ficado. A batalha, o tempo e os danos ao navio, haviam feito com que, aos poucos, tudo fosse percebido e entendido com um grande erro de ancoragem... Apenas um erro de cálculo...
Amarras soltas, nosso navio agora sabe que nunca mais voltará àquelas terras... E todos estão felizes e tranquilos com isso.. As memórias desvaneceram. Aquela terra, que um dia foi cultuada, hoje jazia morta e amaldiçoada pelo coração da tripulação... E na ponte de comando, o capitão pensava que finalmente sua tripulação estava limpa...
Até porque aquelas terras que não eram sequer puras, porquê há haviam sido invadidas por dezenas de saqueadores em outros tempos... E que talvez fossem os resquícios do que ficou daquela cultura ruim que tivesse feito com que a estada naquele porto não fosse definitiva... Por algum tempo todos tentaram fazer daquele porto um lar, mas aquela cultura usava máscaras, que fazia difícil enxergar suas verdadeiras motivações...
"Soltem as amarras...! Içar a bujarrona...!! Velas ao alto...!!!", gritava o capitão do alto da ponte, para uma tripulação ávida de novas descobertas...!! O sol se ensaiava no horizonte. Um novo dia de céu límpido e azul se desdobrava... E a certeza de que novas vidas e novas civilizações seguiriam surgindo, abriu uma canção no coração da tripulação!
A felicidade é um mar a ser desbravado por aqueles que tem coragem de lutar por ideais maiores do que a própria vida... E nossa nau seguirá sempre em frente, em rumo ao seu destino, a um próximo porto, a talvez um porto onde as tratativas façam que novas alianças sejam feitas, e essas alianças sejam definitivas... Mas se não forem, o navio seguirá com sua própria bandeira, firme e forte, velas ao vento, audaciosamente indo, em busca de seu destino final...
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Buzz
(MSC)
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